DESORDEM

07/11/2012 07:35

DESORDEM  

Autor: frei Francisco van der Poel

 

  • Desordem é sinônimo de anarquia, caos, tumulto, desorganização, casa da mãe joana. Em oposição à desordem temos a ordem, o equilíbrio, a paz e a beleza. Quem não se irrita com a desordem no trânsito ou num arquivo. Antes de ser bispo, Dom frei Diogo Reesink no atrapalhado trânsito belorizontino já deu o veredicto: “Deus não quer isso não!”
  • Entre as causas da desordem estão a loucura, o crime, a incompetência, a desigualdade social, a prepotência e desastres naturais. Também exageros trazem confusão: o excesso de presos na cadeia causa revolta e estragos; comer demais dá desarranjo; receber muitos conselhos deixa o povo desorientado.
  • No entanto, a ordem não é um fim em sí. E a organização anda acompanhada da provisoriedade e do admirável jeitinho brasileiro. Frei Bernardino Leers ensina que é preciso admitir que a transgressão de regras nem sempre é coisa negativa. Pode até ser expressão da autonomia popular. Neste sentido, o antropólogo Pierre Sanchis fala da ordem e desordem como elementos essenciais da festa popular. Segundo ele, a regra (tradição/instituição) e a sua transgressão (caos), ambos fazem parte do sagrado: "A festa tende a tornar-se impossível nas sociedades que são, cada vez mais, as nossas. Baseadas na organização e na maximização da produção e do lucro, no cálculo a prazo mais ou menos longo, na racionalização e na procura de eficácia, as nossas sociedades orientam-se no sentido inverso ao da valorização do instante, da imersão no presente absolutizado (...).” Na medida em que a civilização de produção e de mercado tenta reprimir a criatividade coletiva que se alimenta da sua própria gratuidade e dificultar a livre comunicação e a troca generalizada, esta mesma civilização desvirtuada atrai sobre si uma paradoxal condenação: indubitavelmente, um agrupamento relativamente primitivo, onde existem ainda festas efetivas, expressões artísticas comuns, partilhadas por todos, com um analfabetismo absoluto, revela-se superior à cultura dos que mandam no mercado.
  • Sanchis ainda cita autores diversos quando fala da essência espontânea e conclui: “O excesso é necessário ao sucesso das cerimônias celebradas, participa na sua santa virtude e contribui como ela para renovar a natureza e a sociedade. Este desregramento que se opõe (e aliás anuncia) à ordem, à forma e à proibição não é uma simples descarga psicológica.(...) A festa é o caos reencontrado e novamente ordenado.”
  • Um segundo elemento é efetivamente essencial à natureza da festa: ela abre-se sobre o tempo primordial. Esta relação entre o tempo da festa e o tempo do mito foi teorizada por Mircea Eliade: “Só o mito do eterno retorno permite compreender como esta conjunção do desenrolar temporal com o tempo imóvel é regeneradora pela mediação da orgia. Uma orgia que, aliás, não constitui toda a festa, já que se articula com outros momentos totalmente opostos na aparência: A purificação pelas abluções, jejuns e confissão das faltas, extinção e o reacender de fogos, a expulsão dos espíritos maus por vezes sob a forma de um bode expiatório, o regresso dos antepassados (procissões de mascarados) a quem se oferecem banquetes e depois se reconduzem para fora da comunidade, eventualmente os combates cerimoniais.” E Sanchis acrescenta: “Mas esta sucessão de fases não apaga o significado fundamental da celebração festiva: a regeneração da ordem através da emergência de um caos finalmente dominado. Atos proibidos, atos excessivos, atos invertidos, integram-se, efetivamente, neste quadro de sacrilégios, mas sacrilégio ritual - pelo menos em princípio - e como tal proveniente do sagrado, tanto quanto as interdições que viola. Face ao sagrado de regulação, a festa instaura o sagrado de transgressão.”  
  • Também o humor do palhaço consciente põe o mundo de cabeça para baixo. A caricatura questiona o poder constituído. Outras formas de inversão da ordem são o casamento da roça, nas festas juninas, e no carnaval, homens podem vestir-se de mulher e o pobre vira rei.
  • No processo de evolução, há coisas planejadas e outras que nos pegam de surpresa. A estrutura normativa estabilizada da sociedade passa por transformações. Mudam as teorias, as leis, as artes; novos governos são eleitos; tradições se renovam ou são abandonadas; chegou a globalização, juntamente com o direito insurgente e a reforma agrária.
  • Muitas pessoas acreditam que a humanidade caminha da ordem para a desordem e que este é o caminho do final dos tempos e do confronto com o anticristo. Enquanto isso, outros creem que o destino da humanidade se realiza na história através da liberdade humana, construindo o reino de Deus de justiça e verdade. Um mundo melhor será possível? Este é um dos pontos de maior divergência entre a teologia da libertação católica e, de modo geral, a teologia das igrejas evangélicas pentecostais na América Latina. Enquanto isso, a Igreja Universal pratica a teologia da prosperidade.
  • No frigir dos ovos, pensei: Será que as igrejas cristãs terão a coragem de incluir a desordem como elemento necessário e construtivo da renovação? Haja odres novos e lucidez na travessia. (Mt 9,17)

Bibliografia: SANCHIS, Pierre. Arraial: festa de um povo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983. pp. 30-33; BALANDIER, Georges. A desordem: elogio do movimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.